Machado de Assis pelas lentes de seus contemporâneos
O que alguns amigos tinham a dizer sobre o gigante
Olavo Bilac
Ninguém como êle estudou, sondou, analisou, compreendeu essa criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas com a sofreguidão da fome insaciável.
A Vida fria, imperturbável, que é fonte de todo bem e de todo mal. Dêsse estudo e dessa análise, outro qualquer homem sairia desesperado e inútil para qualquer trabalho. Machado de Assis saiu dele desenganado, mas sereno. E fêz do seu desengano uma série de obras-primas, em que o cepticismo, pela graça de que se veste, chega a ser consolador como uma crença.
A tristeza endurece, irrita, encoleriza o mais comum dos homens. O analista das Memórias Póstumas de Braz Cubas, que foi sempre um triste, um oprimido de aflições físicas e morais, não foi nisso, como não foi em tudo mais, um homem vulgar: da sua tristeza nasceu a sua bondade, uma bondade larga de compassivo: Machado de Assis não odiou os homens: teve pena de todos êles, porque teve pena de si mesmo.
Mário de Alencar
Viamo-lo diàriamente; e era hábito seu depois das palestras do Garnier acompanhar-me todas as tardes de bonde até ao Largo do Machado. Não raro ia ver-me na Secretaria, durante as horas de folga do trabalho, às vezes antes do trabalho. Aí, como em tudo, notava-se a extrema delicadeza da sua educação. Educação? Feitio de temperamento é que era, que a educação apenas apurou, pois não há disciplina ou estudo que produza aquêle misto de finura e de timidez que me espantava a mim, tímido entre os tímidos.
Parece-me estar a vê-lo apontar à porta do salão da Biblioteca da Câmara. Parava indeciso, como que a pedir licença, a pedir desculpa de importunar os raros leitores, que continuavam a ler sem dar pelo visitante ilustre. Entrava pisando pé ante pé, sem fazer ruído, e de longe acenava-me que não fosse ao seu encontro para não chamar a atenção sobre êle. Antes de sentar-se, indagava se não me ia incomodar, interromper o trabalho. O que o levava ali, era às vezes uma preocupação de saúde, uma queixa do seu mal, para achar conforto, às vêzes uma impressão de notícias do dia, às vezes coisa nenhuma, o simples gosto de conversar. A preocupação de saúde era freqüente: ou havia os efeitos de um acesso do mal terrível ou a iminência dêle. Falava-me como a seu próprio médico, confiando-me tudo, consultando-me sobre minúcias da moléstia e o que havia de dizer ao seu facultativo; e era de uma docilidade, extraordinária num cético, às minhas opiniões e às minhas advertências; deixava-se persuadir e tinha prazer em ficar persuadido.
Custava-lhe mais a resignação ao sofrimento moral, ao abandono em que o deixou a sorte, matando-lhe a companheira de tantos anos. Falava-me com os olhos velados de lágrimas; eu dava-lhe o conforto que podia, em palavras de afeto sincero, e com a habilidade inspirada por esse afeto ia desviando o seu cuidado para a arte, a outra companheira querida de toda a sua vida. Ao cabo via-o sorrir e sentia o seu agradecimento no apêrto de mão com que se despedia.
Rodrigo Otávio
A lembrança que guardo de Machado de Assis é das mais intensas de minha vida. Encontrei-me com êle, pela primeira vez, no banquete oferecido a Luís Guimarães, quando, de Lisboa, onde desde muitos anos servia como secretário de nossa Legação, veio a esta Capital, em 1886, após o retumbante sucesso do livro dos "Sonetos e Rimas". No vasto salão do segundo andar do velho Globo, hotel desde muito desaparecido, e que foi clássico local de banquetes, à sombra das frondosas figueiras bravas do Carceler, êsse banquete reuniu a flôr de nossas letras. Machado presidiu, e eu, estudante ainda, tendo publicado, pouco antes, meu livrinho dos "Pampanos", fui honrado com um convite, distinção que me subiu à cabeça e me fêz crer que eu era alguma coisa! Nabuco era dos da festa e, convidado para falar, achou mais oportuno, em ágape de poetas, mostrar-se um dêles, e recitou, com aquela voz enérgica e musical, aquela presença dominadora e bela, os magníficos alexandrinos franceses de seu poema "Epíteto".
Machado, que havia publicado, sôbre o meu livrinho de versos, umas palavras amáveis na "A Estação", jornal de modas, editado pela velha Tipografia Lombaerts, que continha uma preciosa seção literária, de que êle era uma espécie de diretor espiritual, nessa festa em que nos encontráramos pela primeira vez, foi para comigo de uma afabilidade que me encheu de desvanecimento. Nesse mesmo ano, um pouco mais tarde, outro banquete comemorou o vigésimo aniversário da publicação das "Crisálidas", primeiro livro de Machado. O banquete foi a 6 de Outubro, fim de ano, tempo em que andava eu agarrado aos livros, em São Paulo. Daí mandei ao Poeta festejado um pobre soneto a que Olavo Bilac, recitando-o, quis generosamente dar todo o prestigio de sua glória nascente.
Alguns dias depois da festa a Luiz Guimarães, fui uma tarde visitar Machado na casa Lombaerts, ponto a que então êle ia, quase diàriamente. Era essa tipografia estabelecida princípio da rua dos Ourives, entre Assembleia e Sete de Setembro, parte da velha rua que foi seccionada pela construção da Avenida Rio Branco e formou rua independente, sob o nome de Rodrigo Silva. A Estação como já disse, era um jornal de modas impresso nessa casa, mas gozando de tão alto prestígio que foi nele que apareceram alguns dos admiráveis contos do livro das "Histórias sem Datas" e todo o "Quincas Borba", tendo-se aproveitado a composição para a primeira edição dêsse livro. Machado acompanhava êsses trabalhos de impressão com grande cuidado, e nessa visita, acentuando o prazer de acompanhar as diversas fases da publicação de um livro, deu-me conselhos — conselhos, dizia êle, que correspondiam a coisas que, até então, não havia podido observar, mas que desejava que os futuros escritores pudessem fazê-lo. Referia-se ao cuidado tipográfico, à escolha do papel, à nitidez da impressão, à beleza do livro, enfim. Muitos anos passaram, e tudo isso, apesar do enorme progresso da indústria de impressão entre nós, ainda é muito dificil. Aloysio de Castro, para conseguir fazer brotar de nossos prelos a maravilha de gôsto e de perfeição que são seus livros, deve ser feliz possuidor de uma preciosa vara de condão…
A Velha Casa Lombaerts não sobreviveu à demolição do prédio em que funcionava. Em compensação, com as transformações da cidade a Casa Garnier mudou de aspecto. Era, desde muitos anos, um pequeno armazém, de duas portas, baixo, escuro, triste, à rua do Ouvidor, depois da rua da Quitanda… E era aí que, em seus últimos anos, à tarde, depois da hora da repartição, o mestre se encontrava com os amigos, num recanto, à direita de quem entrava.